“A memória não é mais do que a sensação transformada.”
Étienne Bonnot de Condillac (1715-1780)
O destino da jovem escritora francesa, Claudine-Alexandrine Guérin de Tencin (1682-1749), baronesa de Saint-Martin-de-Ré, Madame de Tencin, era o claustro; como o das demais jovens do seu tempo. Aos 16 anos fez os votos e passou a viver no monastério dominicano real de Montfleury. Após vinte e dois anos, depois de muitos protestos contra seus votos forçados, ela foi liberada do convento.
Teve uma vida agitada em Paris, entre romances e relações políticas, trabalhou como espiã do cardeal Dubois e fez fortuna rapidamente com o Financière Tecin-Hénault, uma espécie de casa de agiotas. Em 1726, Madame de Tencin é presa sob a acusação de ter matado seu marido, mas é absolvida e solta.
A herança deixada pelo seu marido é investida num salão literário e filosófico. Os salões eram pontos de encontro para debates filosóficos e divulgação da produção literária e artística. Frequentado pelo movimento intelectual, ganhando fama e força até culminar no Iluminismo.
Foi nesse clima pré-revolução, que o Salão da Madame de Tencin recebia tanto a visita de intelectuais como Montesquieu (1689-1755), quanto sediava as reuniões de três bons amigos, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Denis Diderot (1713-1784) e Étienne Bonnot de Condillac (1714-1780).
Assim como a Madame de Tencin, Condillac renunciou ao sacerdócio para dedicar-se à reflexão e filosofia. Ele nunca celebrou uma única missa, apesar de ter sido o Abade de Mureau. Por ter sérios problemas de visão, aprendeu a ler com 12 anos, tornando-se o maior representante da corrente empirista francesa.
Ele foi influenciado por filósofos modernos como John Locke (1632-1704), mas substituiu a observação metafísica e o estudo dos fatos pela sua própria filosofia empirista chamada Sensualismo. (do latim sensualis, “aquele que sente ou que apresenta sensibilidade”; e sensus, “sentido ou capacidade de percepção”).
Seu principal trabalho é o Tratado das Sensações e deu origem à ideia de que os sentidos nos dão conhecimento intuitivo dos objetos. Isso significa que nossas faculdades e o conhecimento humano em geral não passam de sensações transformadas pela reflexão. E a reflexão é um hábito, de constatação da sensação, de onde emanam as ideias.
Sentidos e sensações são diferentes, os sentidos são a causa e as sensações a consequência. As sensações são os estímulos psíquicos que os sentidos captam da natureza e das coisas. As sensações são apresentadas para o pensamento o tempo todo, pois os sentidos estão sempre abertos. Esse é o estado dos animais e dos seres humanos.
A memória humana é a mais desenvolvida do reino animal e seu uso pela experiência reconhece a sensação e percebe a oportunidade de melhorar o conhecimento. Dessa forma, o indivíduo passa a ter duas sensações, uma que já tinha experimentado e a outra que está experimentando. As duas juntas formam as sensações, uma atua nos sentidos e a outra na forma de memória. A sensação somente acontece quando o estímulo atual encontra uma sensação que já existia.
Para efetivar o conhecimento, a nova informação recebida deve partir de um conhecimento já existente, pois o que é absolutamente novo não pode ser compreendido e nem assimilado. A informação deve ser dosada na medida do conhecimento que o outro já possui daquele objeto ou as sensações se amontoarão e a compreensão ficará prejudicada.
Condillac estabelece um processo passional de aquisição do conhecimento em 5 momentos:
1º momento – SENSAÇÕES: os sentidos chamam a atenção da mente.
2º momento – ATENÇÃO: a mente usa os sentimentos para selecionar o que merece mais atenção.
3º momento – COMPARAÇÃO: os sentimentos fazem o pensamento tentar compreender pela memória.
4º momento – JULGAMENTO: o conjunto das sensações experimentadas (memória) produz sentimento de prazer ou sofrimento e a atenção se dirige para o sentimento na construção de um juízo.
5º momento – REFLEXÃO: constatação das sensações, constantemente apresentadas para o pensamento, com a percepção das oportunidades para melhorar o conhecimento, além do desenvolvimento de maior atenção às sensações.
A memória e o juízo são formados na relação com a realidade, na medida em que causam prazer ou sofrimento; e isso nos faz lembrar que podemos contribuir para nossa própria felicidade, orientando nossas faculdades para um objetivo.
É a atualização das sensações que demonstra dissonância ou consonância com o objeto dos nossos desejos, bem como a memória da associação com prazer ou sofrimento. Todo conhecimento vêm dos sentidos.
O discernimento não é algo inato ao ser humano, somente pode existir se for aprendido pelo exercício dos sentidos. Não basta ver, ouvir e sentir para compreender, é necessário que as sensações encontrem experiências memorizadas para serem ajustadas e transformadas, pelo juízo, em novas memórias e em novo conhecimento.
A percepção que temos do mundo é necessariamente acompanhada pela sensação de dor ou prazer, tornando-se um guia para as operações da mente. A atenção dada às sensações forma a memória, que por sua vez é uma das formas de sentir o mundo. É a partir da comparação das experiências passadas e presentes e a relação que se tem com dor ou prazer é que faz surgir o desejo.
O desejo orienta nossas faculdades, desencadeia nossas paixões e estimula a memória e a imaginação. As paixões nada mais são do que sensações transformadas. Para Condillac, a ordem natural das coisas está enraizada nas sensações e na maneira como cada um se sente varia consideravelmente de uma pessoa para outra, afastando a possibilidade de faculdades ou ideias inatas.
O Sensualismo teve grande efeito no desenvolvimento da linguística. A linguagem é o veículo pelo qual sentidos e emoções foram transformados em faculdades mentais superiores, ou seja, a estrutura da linguagem reflete a estrutura do pensamento.
A linguagem é sentimento, pois se trata de uma estrutura formada das sensações e novas sensações são interpretadas pela memória das sensações anteriores. A pessoa tem o conhecimento armazenado na forma de língua, mas foram as sensações físicas que criaram a memória.
O ser humano aprende tudo o que sabe ou poderia saber pelas sensações que os sentidos transmitem ao pensamento. Não há conhecimento que não proceda do exterior para o interior do ser humano. São pelas experiências que se adquire a informação. O conhecimento é uma instituição social em que indivíduos aprendem, na medida em que seus sentidos entram em contato com estímulos capazes de internalizar no pensamento.
Do conjunto que se organiza na linguagem, o indivíduo contribui apenas com as sensações, pois todo o resto é contribuição da memória e dos valores adquiridos. Os sentidos são faculdades do corpo e comuns a todos, mas os conhecimentos não os são. Na essência todos somos iguais, mas na competência e atuação do corpo e da mente, cada um se particulariza pelo modo como adquire conhecimento.
A reflexão sobre algo não tem o poder de criar conhecimento, pois não é fato inato do homem, mas é uma criação da racionalidade pelas experiências sentidas e memorizadas. O conhecimento são as experiências sentidas e memorizadas. A racionalidade dos seres humanos é orientada pela relação das sensações com as experiências memorizadas.
Assim, de grão em grão, as informações são captadas pelos sentidos, enchendo a mente de sensações, associadas com prazer ou sofrimento. Esses elementos formam nossa percepção da realidade, orientando nosso comportamento. Quanto mais compreendermos as associações que fazemos diante dos estímulos externos, maior será nossa capacidade para alinhar ações à objetivos e contribuir para nossa própria felicidade.